O roteiro apontava para uma história rotineira de imigrantes jogadores de futebol brasileiros que se aventuram na Europa e voltam para casa como anônimos. Os carimbos no passaporte também. Afinal, passagens por Grécia, Portugal, Finlândia, Suécia e Dinamarca estão longe de representarem uma carreira de sucesso no Velho Continente. Mas o destino uniu Aílton, Manduca, Marcinho, William Boaventura, Kaká e Marcelo Oliveira no Chipre para mostrarem que no esporte a "zebra" também joga a favor. E foi assim, com a camisa do modesto Apoel Nicósia, que o sexteto do Brasil colocou a pequena ilha no mar Mediterrâneo no mapa do futebol.
Os indícios apontavam para o insucesso. Dono segundo elenco mais velho da Champions League – atrás apenas do Milan –, o Apoel precisava passar por três eliminatórias antes da fase de grupos, que era a meta principal. Fez mais do que isso. Com cinco dos seis brasileiros entre os titulares, triturou os rivais na fase classificatória e surpreendeu a Europa ao deixar Shakthar Donetsk, Porto e Zenit, todos campeões recentes da Liga Europa, para trás no Grupo G, classificando pela primeira vez um clube cipriota para o mata-mata da mais importante competição de clubes do mundo. Resultado espantoso até mesmo pelos responsáveis pelo feito.
Jogadores brasileiros do Apoel Nicósia (Foto: Cahê Mota / Globoesporte.com) - Só a vaga na fase de grupos nos deixou muito orgulhosos e satisfeitos. Depois, tudo tem sido um extra. Ninguém esperava esse sucesso, a forma como as coisas têm acontecido. É um feito gigante na história do país, é uma prova do desenvolvimento rápido do futebol do Chipre – disse o atacante brasileiro Gustavo Manduca, catarinense de 31 anos, que começou na base do Grêmio, mas nunca jogou como profissional no Brasil. No currículo, passagens por Finlândia, Portugal – com direito a temporada no Benfica – e Grécia.
Para entender um pouco mais do fenômeno cipriota que encara o Lyon na próxima terça-feira, na França, sonhando em fazer mais uma vítima, o GLOBOESPORTE.COM foi até Nicósia, capital do Chipre, desvendar a fórmula do sucesso do Apoel (veja no vídeo ao lado gols da vitória da equipe sobre o Porto na fase de grupos da UCL). Como guias, os seis brasileiros que mudaram a história do clube.
Estrutura modesta, mas suficiente
Ainda em Larnaca, cidade vizinha a Nicósia e onde está localizado o aeroporto internacional, foram necessários poucos minutos para perceber que o país, dividido entre gregos e turcos, era também território “colonizado” por brasileiros. No caminho para o estacionamento, na companhia do lateral-esquerdo William Boaventura, um grupo de cipriotas se divertia com o som do carro nas alturas. O hit? “Ai se eu te pego”, de Michel Teló, trilha sonora do futebol europeu na temporada.
A música é a mesma que embalou o aquecimento dos jogadores na academia do centro de treinamento. Artilheiro e principal jogador da equipe, Aílton, de 27 anos, revelado pelo Atlético-MG e que também nunca jogou Brasil, atacou de DJ e soltou o som para passos desengonçados dos companheiros.
É um país até parecido com o Brasil. Acho que isso tem facilitado muito o nosso sucesso"
Aílton
– É um país até parecido com o Brasil. As pessoas são abertas, acolhedoras. Acho que isso tem facilitado muito o nosso sucesso. A gente também impõe nossa alegria no clube, no vestiário. É o jeito brasileiro de ser – analisou o mineiro enquanto gargalhava.
O investimento nos brasileiros foi uma aposta da diretoria do clube em meados de 2010, quando uma meta foi traçada: levar o Apoel de volta à Liga dos Campeões. Apesar da lanterna em sua chave na edição de 2009, quando pela primeira vez um time do Chipre alcançou a fase de grupos, a participação turbinou as finanças e deixou claro que o crescimento do clube passava pela presença constante na competição.
– O Apoel já tinha participado da Liga dos Campeões há três anos e tinha esse sonho de voltar para fazer uma boa campanha. Abraçamos esse projeto desde o ano passado. Conseguimos o título nacional e o passo seguinte era a vaga na fase de grupos. Estamos vivendo esse momento especial porque sonhamos juntos e caminhamos passo a passo há mais de um ano e meio – revelou Manduca
Aílton trabalha na academia do Apoel (Foto: Cahê Mota / Globoesporte.com) A aposta nos brasileiros, por sua vez, não impediu também que melhorias estruturais fossem realizadas. Ao contrário de clubes como o Chelsea, rival na Champions de 2009, e o Shaktar, eliminado na última posição no grupo este ano, o Apoel não conta com um mecenas e todo o orçamento vem de patrocínio, cotas de TV, participação em campeonatos e apoio de empresários locais. A realidade reflete na folha salarial de “apenas” 8,5 milhões de euros por temporada, com média entre 12 e 17 mil mensais para os jogadores. Valor que Manduca tratou como satisfatório diante das circunstâncias.
Campos do CT do Apoel em Nicósia
(Foto: Cahê Mota / Globoesporte.com) O clube paga em dia, é correto, paga bem, dá bons prêmios e nos oferece a estrutura necessária para trabalhar. É o suficiente. Não é algo luxuoso, mas é o suficiente.
A estrutura modesta citada pelo brasileiro conta com dois campos, sala de estar, academia e departamento médico equipados e vestiário moderno.
‘Os brasileiros ditam nosso estilo'
E o sucesso dos brasileiros não causa qualquer tipo de ciúmes com os cipriotas, maioria no elenco, com 11 representantes. Pelo contrário, a relação é de admiração. Normalmente, apenas um jogador local é escalado entre os titulares, que contam ainda com um grego, três portugueses e um jogador da Macedônia.
– Eles são muito importantes no nosso time. Os brasileiros ditam o estilo do nosso jogo, tornam o time melhor e parece que são membros do Apoel há anos. Principalmente, pela forma como se comportam no clube. Foram importantes não somente para chegarmos às oitavas como também para entrarmos na Champions League – declarou o meia Nektarius Alexandrou.
Membro também da seleção do Chipre, ele detalhou o papel de cada um dos brasileiros mais antigos na equipe e deixou claro que a expectativa é de que a ala tupiniquim do Apoel, que, coincidentemente, usa camisas amarelas, siga fazendo a diferença diante do Lyon.
– Eles foram decisivos. Aílton e Manduca marcaram a maioria dos gols, Boa (William) tem feito uma grande temporada, Marcinho é um cara que mudou o nosso estilo de jogo. Todos eles representam muito e esperamos ainda mais deles.
Torcida do Apoel (Foto: Cahê Mota / Globoesporte.com) Camisa 10 e capitão da equipe de Nicósia e também da seleção cipriota, Constantinos Charalambides fez coro com o compatriota e demonstrou confiança em uma até então impensável vaga nas quartas de final.
Já estamos acima das nossas possibilidades"
Charalambides
– Agora, podemos sonhar muitas coisas. Quando nos classificamos para fase de grupos, nunca imaginávamos uma classificação como primeiro do grupo. Então, o que devemos fazer é continuar jogando como temos jogado até agora. Vamos com autoconfiança enfrentar o Lyon, acreditando nas nossas possibilidades. Por que não? Já estamos acima das nossas possibilidades.
Para Charalambides, a campanha atual tem o poder de transformar não só o Apoel, mas o futebol do Chipre em si, aumentando a expectativa para o futuro.
– Depois desse sucesso, toda Europa vai respeitar mais o Chipre e o Apoel. É importante que eles nos conheçam. Há quatro, cincos anos atrás ninguém sabia da existência da Liga de Futebol do Chipre. O que estamos fazendo é importante para que todos os times daqui cresçam.
Na sede do clube, mural com fotos dos jogos na
fase de grupos da UCL (Foto: Cahê Mota Torcedor pede mais brasileiros
E se a expectativa é de que o futebol do Chipre bata ponto frequentemente na Champions League, os torcedores sabem bem o que é necessário para que o Apoel continue como esse representante: contratar mais jogadores brasileiros. Para isso, há até quem ignore a opinião do treinador sérvio Ivan Jovanovic na hora de dar conselhos ao presidente:
– Sem os brasileiros, jamais conseguiríamos chegar onde chegamos. Já até falei com o presidente que ele precisa se reunir com os seis e pedir conselhos de outros jogadores do Brasil que possam ser contratados – disse Michael Antoniades, torcedor fanático e dono de um hotel em Nicósia.
A opinião é compartilhada por Charalambides, que mantém os pés no chão e sabe que o clube ainda não tem condição de sonhar com estrelas do primeiro escalão brasileiro.
– Não estamos preparados para receber jogadores muito famosos. Mas acho que podemos receber outros brasileiros muito bons.
O capitão, no entanto, é mais um dos que têm brasileiros como referência desde a infância.
– Sempre gostei muito de olhar a Seleção Brasileira, os jogadores brasileiros. O futebol de vocês é uma inspiração, a maneira como amam esse esporte. Admiro muito tudo isso. Gostava muito do Ronaldinho no Barcelona, Ronaldo no auge da carreira, todos esses que contribuíram para história do futebol.
William Boaventura no treino do Apoel (Foto: Cahê Mota / Globoesporte.com) É nítida a forte ligação dos cipriotas com o Brasil. Durante o treinamento no CT, um dos médicos do clube se aproximou da reportagem do GLOBOESPORTE.COM para bate-papo sobre o assunto, fazendo questão de elogiar Sócrates e a Seleção de 82, além de defender Pelé na polêmica disputa com Maradona pelo posto de melhor de todos os tempos:
– Não há discussão. O Pelé jogava com tudo: os dois pés, cabeça, peito...
Sucesso não faz brasucas sonharem com volta para casa
A mesma medida em que os cipriotas torcem pela chegada de novos brasileiros, os que lá já estão não pretendem fazer o caminho inverso. Cientes da grandeza do feito realizado na pequena ilha do mediterrâneo, o sexteto é quase unânime ao apontar que voltar para casa seria colocar a carreira estabilizada que têm hoje em dia em risco.
á não tenho mais o desejo que eu tinha na infância de atuar em um grande clube"
Willianr
– Minha possibilidade de retorno é bem remota. Meu plano é ficar por aqui mais dois, três anos e encerrar a carreira. Já não tenho mais o desejo que eu tinha na infância de atuar em um grande clube – falou William Boaventura, ou somente Boa, como é chamado pela torcida. Aos 31 anos, ele foi revelado pelo Cruzeiro, passou pelo Cabofriense e está na Europa desde 2004, quando chegou ao próprio Apoel antes de rodar por Rússia e Ucrânia.
O discurso de Manduca vai ao encontro do companheiro. Mesmo admitindo que o fato de nunca ter jogado como profissional no Brasil representa uma lacuna em sua carreira, o atacante não se mostrou disposto a trocar a condição de ídolo no Chipre por um “capricho”.
– Quando vejo os jogos, fico um pouco agoniado. Queria dar um chute lá, aparecer para o meu país, jogar no Olímpico, onde nasci, no Maracanã... Mas quando coloco na balança, desanima. Aqui, já tenho um nome, uma estabilidade, um respeito. No Brasil, começaria do zero. Teria que reduzir meu salário, chegar arrebentando, etc... Não estou disposto a abrir mão do que tenho só para matar uma vontade.
Manduca no treino do Apoel (Foto: Cahê Mota / Globoesporte.com) Mais jovem do grupo, Aílton pensa, sim, em deixar o Chipre, mas mira a Espanha.
– Saí do Brasil com 19 anos e nunca tive a oportunidade de jogar como profissional no Galo. Na verdade, meu sonho sempre foi jogar na Europa e conquistei isso cedo. Estou acostumado, gosto muito e o que tenho em mente é ir para o Campeonato Espanhol. É o que projeto agora. É o melhor campeonato do mundo e que encaixa no meu estilo de jogo.
A voz discordante no grupo é o zagueiro Marcelo Oliveira. Aos 31 anos, ele começou na Ulbra (RS) e já passou por Corinthians e Grêmio, antes de ter as portas da Europa abertas através do futebol grego. O desejo de volta, porém, se dá por um motivo familiar: o sonho de jogar ao lado do irmão Elias, meia ex-Fluminense, Vasco e que defende do Atlético-GO.
– Tenho muita vontade de voltar, sim. Tenho um irmão que joga também e queria jogar com ele em uma equipe de Série A no Brasil. É algo que nós sonhamos desde criança, mas no futebol nunca sabemos o que vai acontecer, né? Estou muito bem aqui também. Deixa o futuro acontecer.
Até porque, o futuro do Apoel começa a ser definido nesta terça-feira, no Estádio Gerland, em Lyon, na primeira partida das oitavas de final da Champions League. E que os franceses não duvidem do que os cipriotas são capazes.
Saiba um pouco mais dos brasileiros:
Gustavo Manduca
Idade: 31 anos
Origem: Santa Catarina
Primeiro clube: Grêmio
Carreira: passagens pelo futebol da Finlândia, Portugal, Grécia e Chipre
Aílton
Idade: 27 anos
Origem: Minas Gerais
Primeiro clube: Atlético-MG
Carreira: passagens pelo futebol da Suécia, Dinamarca e Chipre
William Boaventura
Idade: 31 anos
Origem: Minas Gerais
Primeiro clube: Cruzeiro
Carreira: passagens pelo Cabofriense, futebol da Ucrânia, Rússia e Chipre
Marcinho
Idade: 30 anos
Origem: Pernambuco
Primeiro clube: São Caetano
Carreira: passagens pelo Santos, CRB, futebol de Portugal e Chipre
Marcelo Oliveira
Idade: 30 anos
Origem: Rio Grande do Sul
Primeiro clube: Ulbra
Carreira: passagens pelo Corinthians, Grêmio, futebol da Grécia e Chipre
Kaká
Idade: 30 anos
Origem: Paraná
Primeiro clube: União Bandeirante
Carreira: passagens pelo futebol de Portugal, Alemanha e Chipre